O ABUTRE
Tradução de Isabel Castro Silva
Era um abutre que me picava os pés.
Tinha já rasgado as botas e as meias e agora bicava os próprios pés. Bicava
sempre sem parar, esvoaçava depois inquieto várias vezes à minha volta e
retomava o trabalho. Um homem passou por nós, observou por um momento e depois
perguntou por que tolerava eu o abutre.
“Não tenho como me defender”,
disse eu, “ele chegou e começou a bicar-me, e é claro que o quis enxotar,
tentei mesmo estrangulá-lo, mas um animal destes tem muita força, também já
queria saltar-me para a cara, por isso preferi sacrificar antes os pés. Agora
já estão quase esfacelados.”
“Imagine-se, deixar-se torturar
assim”, disse o homem, “um tiro e é o fim do abutre.”
“A sério?” perguntei eu, “e o
senhor não quer tratar disso?”
“Com muito gosto”, disse o
homem, “tenho só de ir a casa buscar a espingarda. Consegue esperar ainda uma
meia hora?”
“Não sei”, disse eu, e por um
instante fiquei hirto de dor, depois disse: “Em todo o caso tente, por favor.”
“Muito bem”, disse o homem,
“vou apressar-me.”
Durante a conversa o abutre
ouvira serenamente, deixando vaguear o olhar entre mim e o homem. Via agora que
ele entendera tudo, levantou voo, curvou-se muito para trás para ganhar balanço
e como um atirador de lanças enfiou então o bico pela minha boca até o mais
fundo de mim. Ao cair para trás senti-me liberto enquanto no meu sangue que
enchia todas as profundezas e transbordava de todas as margens ele se afogava
sem salvação.
Franz
Kafka
Contos
Seleção e
prólogo de Jorge Luis Borges
Lisboa,
Relógio D’Água Editores, 2005, p. 17-18
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