terça-feira, 10 de junho de 2014

Luís Carlos Lopes / Em defesa da língua portuguesa



Em defesa da língua portuguesa
Luís Carlos Lopes

La Insignia, Brasil, fevereiro de 2007

Meio milênio depois da descoberta das Américas e da criação e do desenvolvimento da América portuguesa é bom refletir sobre o produto cultural mais significativo deste processo: a língua portuguesa. Antes de este artigo ser escrito, a Mangueira - Salve a Mangueira! - já havia, na vanguarda da cultura popular brasileira lembrado disto, no belíssimo samba-enredo deste ano.
O Império colonial luso foi formado na mesma época acima citada, indo muito mais longe. Incluiu várias regiões da África e da Ásia. No que viria a ser o Brasil, o Império criou sua mais rica colônia sustentada pelo braço dos autóctones e dos africanos convertidos em escravos e imigrados forçados.
Na África, o mesmo Império organizou o tráfico de seres humanos e a produção de subsistência local. Na Ásia, permaneceu no Japão por um século, mordiscou as costas da Índia, do sudeste asiático e da velha China, chegando à Oceania, onde não se estabeleceu, mais se aproximou com algum interesse das costas australianas.
Como conseqüência destes e de outros problemas, a língua portuguesa tem quinhentos ou mais anos de presença nos quatro cantos do mundo. Mesmo que o português não tenha conseguido se consolidar em todos os lugares por onde passou, de algum jeito deixou sua marca que continua a reverberar. Hoje, sobretudo, a partir do seu maior contingente de falantes, isto é, do Brasil.
No tempo da diáspora mundializada, os falantes do português avançaram ainda mais. Eles estão por toda a parte através da emigração na direção de onde ainda existe trabalho e salários melhores.
Em alguns casos, esta língua, quando está fora do seu território original, contenta-se em ser uma fala da família e/ou da comunidade da mesma origem. As novas gerações dos filhos dos emigrantes para os países mais ricos estão a perdendo. As versões escritas e faladas do português são fundamentais para manter a comunicação viva desta língua no cérebro de todos os envolvidos.
As descobertas e os processos de colonização jamais foram um caminho de mão única. Os colonizadores sofreram influências dos colonizados. Estes últimos também descobriram novas culturas que chegaram por meio da nova língua de comunicação, imposta pelo poder colonial.
Não se sabe muito sobre os sentimentos dos ameríndios, dos africanos e dos asiáticos sobre a língua do colonizador português. Os vencedores construíram suas versões dos fatos. Pode-se imaginar a surpresa inicial e, no próximo passo, a revolta contra a opressão.
Com o tempo, a língua do colonizador transformou-se na principal língua de comunicação. Todavia, houve sempre a incorporação de palavras, costumes, acentos e outras características dos colonizados. Isto é o que aconteceu de modo muito evidente no Brasil e nas colônias portuguesas na África.
Há várias formas de falar e escrever o português. Todas as tentativas de se tentar criar uma forma única - a que seria justa e correta - não conseguiram sucesso. Não é possível impedir os povos de manejar as suas línguas de acordo com as suas histórias, culturas e interesses.
Não existe a possibilidade de um português perfeito. Isto é uma utopia negativa e desmobilizadora. O mesmo se pode dizer de um francês perfeito etc. As línguas são corpos vivos nas almas das pessoas que as utilizam por toda a vida. Fazem parte dos corpos biológicos dos que as conseguem falá-las, escrevê-las e retê-las em seus registros neurais.
A capacidade da língua portuguesa de se adaptar e de ser falada por culturas muito diferentes é a mesma do inglês e do francês. O português é uma língua de cultura, equivalente às demais línguas modernas. Isto quer dizer, que se pode falar de qualquer coisa simples ou complexa, usando-se a língua de Camões.
A vitória desta língua consiste na: força de mais do que 200 milhões de falantes; existência de uma vasta e complexa literatura; a presença de redes científicas que trabalham em português; incorporação do léxico e da sintática das experiências culturais européias, africanas, americanas e asiáticas; onipresença da música cantada em português e de vários outros artefatos da indústria cultural que fala o português.
A geografia da língua portuguesa foi, na origem, quase a mesma das grandes descobertas dos navegadores do mesmo país. As línguas dos autóctones foram substituídas com força no lado atlântico da América do Sul. Na Ásia, o pequeno tamanho da colonização e a resistência local impediram uma vitória lingüística total. Na África, a presença do português jamais obteve o esmagamento completo das línguas locais.
Hoje, como efeito da força das emigrações para os países ricos e de outros problemas da mundialização, esta língua está presente bem longe das viagens dos portugueses. É falada nos Estados Unidos, no Canadá, na França etc.
A geografia física determina a posição ocidental de Portugal. Este país seria um país do Ocidente. No nível físico, é isto mesmo. Portugal é um país europeu-ocidental. Hoje, muitos dos portugueses adoram o fato da incorporação de seu país ao Euro e a CEE. O passado de isolamento foi superado.
No sentido da cultura e da história, as coisas são bem diferentes. O Império colonial de Portugal incluiu partes da América do Sul, da África e da Ásia. Dois séculos antes das grandes descobertas e do início das colonizações, Portugal era parte de uma região européia bastante arabizada. A Idade Média de Portugal foi vivida, em grande parte, sobre a dominação árabe.
É possível perceber um resultado bastante complexo e mestiçado nos espíritos dos portugueses. Observe-se a existência, na cultura portuguesa, dos traços da complexidade geográfica do Império. É possível ver fortes vestígios das culturas dos colonizados e dos antigos dominadores dos colonizadores.
É bom lembrar o fato da grande duração do feudalismo português e da presença da cultura católica da Contra-Reforma, até o século XX.
O barroco português misturou-se, por exemplo, com as culturas do Brasil. Isto resultou no barroco brasileiro, ainda muito presente na cultura oral e, de modo impressionante, nos meios de comunicação atuais do Brasil.
O sucesso das telenovelas brasileiras em Portugal, por exemplo, está ligado a mesma árvore de origem das culturas de ambos países. Os gostos alimentares dos brasileiros e dos portugueses são próximos, no sentido da utilização dos produtos de origem européia, americana e oriental. Visitar um mercado de produtos orientais ou africanos é, no mesmo sentido, se aproximar de culturas comuns.
A língua portuguesa é a pátria de várias culturas do passado e do presente. No Brasil atual, pode-se ver o crescimento da pressão e da incorporação da língua inglesa pelo português brasileiro.
Em passado recente, pôde-se ver, até a década de 1960, ocorrer o mesmo com a língua francesa e sua influência no português do Brasil. Sabe-se que coisas semelhantes ocorreram nas ex-colônias lusófonas da África e no português de Portugal.
Chegam, hoje, tristes notícias de ameaças concretas do português desaparecer na Guiné Bissau, substituído pelo francês, e do inglês estar substituindo progressivamente o português de Moçambique.
A língua portuguesa continua e continuará a viver dentro das possibilidades de seu futuro histórico. Isto depende de nós. É preciso que exista o engajamento da vanguarda dos seus falantes, para fazer continuar sua história em muitos dos lugares do mundo onde ela é presente.
Não se pode aceitar o mundo com apenas uma língua de comunicação. Isto significa um mundo sem uma alma cultural e sem história. Proclama-se em qualquer língua a beleza do português, sua importância como meio de comunicação humano, que carrega a história de vários povos do mundo.
No presente, a diáspora dos trabalhadores de todas as profissões continua a semear a língua portuguesa em escala universal. Agora, não existem mais os limites geográficos do passado. Os novos limites são os das fronteiras econômicas da mundialização.
Mesmo assim, ainda há um risco, talvez mais forte do que no passado, da língua de Camões e de Saramago desaparecer ou ficar ainda mais frágil. Está disseminada a idéia do pensamento único e de uma única língua 'natural' desta maneira de ver o mundo.
Pode-se resistir!







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