Em defesa da língua portuguesa
Luís Carlos Lopes
La Insignia, Brasil, fevereiro de 2007
Meio milênio depois da
descoberta das Américas e da criação e do desenvolvimento da América portuguesa
é bom refletir sobre o produto cultural mais significativo deste processo: a
língua portuguesa. Antes de este artigo ser escrito, a Mangueira - Salve a
Mangueira! - já havia, na vanguarda da cultura popular brasileira lembrado
disto, no belíssimo samba-enredo deste ano.
O Império colonial luso foi formado na
mesma época acima citada, indo muito mais longe. Incluiu várias regiões da
África e da Ásia. No que viria a ser o Brasil, o Império criou sua mais rica
colônia sustentada pelo braço dos autóctones e dos africanos convertidos em escravos
e imigrados forçados.
Na África, o mesmo Império organizou o
tráfico de seres humanos e a produção de subsistência local. Na Ásia,
permaneceu no Japão por um século, mordiscou as costas da Índia, do sudeste
asiático e da velha China, chegando à Oceania, onde não se estabeleceu, mais se
aproximou com algum interesse das costas australianas.
Como conseqüência destes e de outros
problemas, a língua portuguesa tem quinhentos ou mais anos de presença nos
quatro cantos do mundo. Mesmo que o português não tenha conseguido se
consolidar em todos os lugares por onde passou, de algum jeito deixou sua marca
que continua a reverberar. Hoje, sobretudo, a partir do seu maior contingente
de falantes, isto é, do Brasil.
No tempo da diáspora mundializada, os
falantes do português avançaram ainda mais. Eles estão por toda a parte através
da emigração na direção de onde ainda existe trabalho e salários melhores.
Em alguns casos, esta língua, quando
está fora do seu território original, contenta-se em ser uma fala da família
e/ou da comunidade da mesma origem. As novas gerações dos filhos dos emigrantes
para os países mais ricos estão a perdendo. As versões escritas e faladas do
português são fundamentais para manter a comunicação viva desta língua no
cérebro de todos os envolvidos.
As descobertas e os processos de
colonização jamais foram um caminho de mão única. Os colonizadores sofreram
influências dos colonizados. Estes últimos também descobriram novas culturas
que chegaram por meio da nova língua de comunicação, imposta pelo poder
colonial.
Não se sabe muito sobre os sentimentos
dos ameríndios, dos africanos e dos asiáticos sobre a língua do colonizador
português. Os vencedores construíram suas versões dos fatos. Pode-se imaginar a
surpresa inicial e, no próximo passo, a revolta contra a opressão.
Com o tempo, a língua do colonizador
transformou-se na principal língua de comunicação. Todavia, houve sempre a
incorporação de palavras, costumes, acentos e outras características dos
colonizados. Isto é o que aconteceu de modo muito evidente no Brasil e nas
colônias portuguesas na África.
Há várias formas de falar e escrever o
português. Todas as tentativas de se tentar criar uma forma única - a que seria
justa e correta - não conseguiram sucesso. Não é possível impedir os povos de
manejar as suas línguas de acordo com as suas histórias, culturas e interesses.
Não existe a possibilidade de um
português perfeito. Isto é uma utopia negativa e desmobilizadora. O mesmo se
pode dizer de um francês perfeito etc. As línguas são corpos vivos nas almas
das pessoas que as utilizam por toda a vida. Fazem parte dos corpos biológicos
dos que as conseguem falá-las, escrevê-las e retê-las em seus registros
neurais.
A capacidade da língua portuguesa de se
adaptar e de ser falada por culturas muito diferentes é a mesma do inglês e do
francês. O português é uma língua de cultura, equivalente às demais línguas
modernas. Isto quer dizer, que se pode falar de qualquer coisa simples ou
complexa, usando-se a língua de Camões.
A vitória desta língua consiste na:
força de mais do que 200 milhões de falantes; existência de uma vasta e
complexa literatura; a presença de redes científicas que trabalham em
português; incorporação do léxico e da sintática das experiências culturais
européias, africanas, americanas e asiáticas; onipresença da música cantada em
português e de vários outros artefatos da indústria cultural que fala o
português.
A geografia da língua portuguesa foi,
na origem, quase a mesma das grandes descobertas dos navegadores do mesmo país.
As línguas dos autóctones foram substituídas com força no lado atlântico da
América do Sul. Na Ásia, o pequeno tamanho da colonização e a resistência local
impediram uma vitória lingüística total. Na África, a presença do português
jamais obteve o esmagamento completo das línguas locais.
Hoje, como efeito da força das
emigrações para os países ricos e de outros problemas da mundialização, esta
língua está presente bem longe das viagens dos portugueses. É falada nos
Estados Unidos, no Canadá, na França etc.
A geografia física determina a posição
ocidental de Portugal. Este país seria um país do Ocidente. No nível físico, é
isto mesmo. Portugal é um país europeu-ocidental. Hoje, muitos dos portugueses
adoram o fato da incorporação de seu país ao Euro e a CEE. O passado de
isolamento foi superado.
No sentido da cultura e da história, as
coisas são bem diferentes. O Império colonial de Portugal incluiu partes da
América do Sul, da África e da Ásia. Dois séculos antes das grandes descobertas
e do início das colonizações, Portugal era parte de uma região européia
bastante arabizada. A Idade Média de Portugal foi vivida, em grande parte,
sobre a dominação árabe.
É possível perceber um resultado
bastante complexo e mestiçado nos espíritos dos portugueses. Observe-se a
existência, na cultura portuguesa, dos traços da complexidade geográfica do
Império. É possível ver fortes vestígios das culturas dos colonizados e dos
antigos dominadores dos colonizadores.
É bom lembrar o fato da grande duração
do feudalismo português e da presença da cultura católica da Contra-Reforma,
até o século XX.
O barroco português misturou-se, por
exemplo, com as culturas do Brasil. Isto resultou no barroco brasileiro, ainda
muito presente na cultura oral e, de modo impressionante, nos meios de
comunicação atuais do Brasil.
O sucesso das telenovelas brasileiras
em Portugal, por exemplo, está ligado a mesma árvore de origem das culturas de
ambos países. Os gostos alimentares dos brasileiros e dos portugueses são
próximos, no sentido da utilização dos produtos de origem européia, americana e
oriental. Visitar um mercado de produtos orientais ou africanos é, no mesmo
sentido, se aproximar de culturas comuns.
A língua portuguesa é a pátria de
várias culturas do passado e do presente. No Brasil atual, pode-se ver o
crescimento da pressão e da incorporação da língua inglesa pelo português
brasileiro.
Em passado recente, pôde-se ver, até a
década de 1960, ocorrer o mesmo com a língua francesa e sua influência no
português do Brasil. Sabe-se que coisas semelhantes ocorreram nas ex-colônias
lusófonas da África e no português de Portugal.
Chegam, hoje, tristes notícias de
ameaças concretas do português desaparecer na Guiné Bissau, substituído pelo
francês, e do inglês estar substituindo progressivamente o português de
Moçambique.
A língua portuguesa continua e
continuará a viver dentro das possibilidades de seu futuro histórico. Isto
depende de nós. É preciso que exista o engajamento da vanguarda dos seus
falantes, para fazer continuar sua história em muitos dos lugares do mundo onde
ela é presente.
Não se pode aceitar o mundo com apenas
uma língua de comunicação. Isto significa um mundo sem uma alma cultural e sem
história. Proclama-se em qualquer língua a beleza do português, sua importância
como meio de comunicação humano, que carrega a história de vários povos do
mundo.
No presente, a diáspora dos
trabalhadores de todas as profissões continua a semear a língua portuguesa em
escala universal. Agora, não existem mais os limites geográficos do passado. Os
novos limites são os das fronteiras econômicas da mundialização.
Mesmo assim, ainda há um risco, talvez
mais forte do que no passado, da língua de Camões e de Saramago desaparecer ou
ficar ainda mais frágil. Está disseminada a idéia do pensamento único e de uma
única língua 'natural' desta maneira de ver o mundo.
Pode-se resistir!
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