Um castelo de cartas?
Com a passagem dos meios de comunicação de sociedades capitalistas para o “povo organizado”, em 1974, começaria a existir a verdadeira liberdade de imprensa no Peru. A realidade foi diferente.
MARIO VARGAS LLOSA 11 JAN 2014 - 18:00 BRST
Quando, em julho de 1974, a ditadura do general Juan Velasco Alvarado estatizou todos os jornais e canais de televisão do Peru, explicou que o país até então só havia tido liberdade de empresa, e que a partir de então, com a passagem dos meios de comunicação de sociedades capitalistas para o “povo organizado”, começaria a existir a verdadeira liberdade de imprensa. A realidade foi diferente. Os jornais, rádios e canais expropriados se dedicaram a enaltecer todas as iniciativas do regime, a difamar e silenciar seus críticos, e, além de desaparecer toda a liberdade de informação, o jornalismo peruano atingiu naqueles anos extraordinários níveis de mediocridade e aviltamento. Por isso, quando seis anos depois, ao ser eleito presidente, Fernando Belaunde Terry devolveu os jornais e demais meios de comunicação aos seus donos, uma grande maioria dos peruanos acolheu favoravelmente a medida.
Acho que a partir de então boa parte da opinião pública do país aceitou – alguns com alvoroço, e outros relutantemente – que a liberdade de imprensa era inseparável da liberdade de empresa e da propriedade privada, pois, quando estas desapareciam, se esfumava com elas a informação independente, bem como qualquer possibilidade de criticar o poder. Por isso, a ditadura de Fujimori e Montesinos utilizou uma forma menos grosseira que a estatização para garantir uma imprensa viciada: a intimidação ou a distribuição de sacos de dólares entre jornalistas e donos de meios de comunicação.
Pois bem, o fato de haver uma economia de mercado e respeito à propriedade privada não basta para, por si só, garantir a liberdade de imprensa em um país. Esta se vê ameaçada também se um grupo econômico passa a controlar de maneira significativamente majoritária os meios de comunicação escritos ou audiovisuais. É o que acaba de ocorrer no Peru com a compra, pelo grupo El Comercio, dos jornais da Epensa, operação que lhe garante o controle de quase 80% da imprensa escrita no país (o El Comercio possui também um canal de TV a cabo e o mais importante canal de televisão aberta do Peru). Isso gerou um intenso debate sobre a liberdade de informação e de crítica, algo que me parece sumamente útil, porque o tema ultrapassa o âmbito nacional e afeta boa parte dos países latino-americanos.
Oito jornalistas solicitaram uma liminar do Poder Judiciário para que seja anulada aquela compra, porque, segundo alegam, ela viola o princípio constitucional que proíbe que os meios de comunicação sejam “objeto de exclusividade, monopólio ou acumulação”. O El Comercio, por sua vez, argumenta que o modelo de compra que efetuou com os jornais da Epensa só diz respeito à impressão e distribuição, preservando sua linha editorial. Entretanto, conforme frisou Enrique Zileri Gibson, um desses oito jornalistas, nenhum dos jornais do El Comercio e da Epensa noticiou que o Poder Judiciário havia tramitado o pedido de liminar contra a fusão das empresas. Seria puramente casual essa unanimidade no silêncio?
Nenhum país democrático admite que um órgão de imprensa açambarque elevados percentuais do mercado da informação, porque, se admitisse, a liberdade de imprensa e o direito de crítica se veriam tão radicalmente ameaçados como quando o poder político se apropria dos meios de comunicação para “libertá-los da exploração capitalista”. A pergunta-chave é: qual é a melhor maneira de impedir o monopólio, privado ou estatal, da informação? Uma lei de mídia, discutida e aprovada no Parlamento? É o que o parlamentar governista Manuel Dammert anunciou que apresentará, um projeto que contaria com o apoio de dois dos partidos que sustentam o Governo do presidente Humala.
Esse seria, na minha opinião, um remédio pior do que a doença. Em vez de garantir a diversificação informativa, poria nas mãos do poder político uma arma que lhe permitiria cercear a liberdade de imprensa e até aboli-la. É verdade que em várias democracias avançadas existem leis específicas contra o monopólio e organismos de Estado que verificam seu cumprimento, como a espanhola Comissão Nacional da Concorrência. São organismos de Estado, não de governo. Essa distinção só é real nas sociedades desenvolvidas. No mundo do subdesenvolvimento, a diferença entre Estado e Governo é retórica, pois, na prática, este último coloniza o Estado e o coloca a seu serviço. Por isso, todas as leis de mídia feitas nos últimos anos na América Latina – na Venezuela, na Argentina, na Bolívia, no Equador – serviram a governos populistas ou autoritários, para cercear drasticamente a liberdade de informação e de opinião e para fazer pender, como uma espada de Dâmocles, a ameaça de fechamento, de censura ou expropriação sobre os órgãos de imprensa indóceis e críticos à sua gestão.
Qual é, então, a saída? Aceitar, como mal menor, que um órgão de imprensa controle mais de três quartos da informação e acreditar nos sofismas dos que apoiam o El Comercio, afirmando que a fusão não tem conotações políticas, que é resultado apenas da eficácia e do talento com que souberam vender seu “produto” no mercado informativo? Para semelhante raciocínio, não existe diferença entre um órgão de imprensa e “produtos” como panelas ou sucos de fruta. A verdade é que quando uma panela derrota seus concorrentes e fica dona do mercado, o pior que pode acontecer é que o preço das panelas suba ou que “o produto” comece a se deteriorar, porque o monopólio costuma produzir ineficiência e corrupção. Em contrapartida, quando um órgão de imprensa anula os concorrentes e se converte em amo e senhor da informação, esta passa a ser um monólogo tão cacofônico como o de uma imprensa estatizada. E com ela não se deteriora apenas a liberdade de informação e de crítica, como também a liberdade, pura e simples, corre o risco de ser eclipsada.
A maneira mais sensata de conjurar esse perigo é, creio eu, a que foi escolhida pelos oito valentes jornalistas que enfrentaram o gigante: recorrer ao Poder Judiciário para que este determine se a fusão transgride o princípio constitucional contra o monopólio e a acumulação, como acreditamos muitos democratas peruanos, ou se é lícita. Esse processo, com as inevitáveis apelações, pode chegar até as mais altas instâncias judiciais, claro, e até o Tribunal Constitucional ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, de San José. Eu gostaria que chegasse até lá porque essa é uma instituição verdadeiramente independente e capaz, de maneira que sua sentença teria mais possibilidades de ser aceita pela opinião pública peruana.
Nada semelhante ocorreria se chegasse a prosperar a iniciativa – inoportuna e profundamente prejudicial a um Governo que, até agora, respeitou as instituições democráticas – do congressista Manuel Dammert. Infelizmente, o Congresso tem muito pouca autoridade moral e intelectual no país – em todas as pesquisas aparece como uma das instituições mais mal avaliadas –, e não há possibilidade de que esse debate fundamental sobre a liberdade de imprensa se leve a cabo ali da maneira serena e elevada que exige um assunto essencialmente vinculado à sobrevivência da democracia.
Uma lei de imprensa só é aceitável se for fruto do consenso de todas as forças democráticas de um país, como ocorre nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Espanha e na França, algo que nas atuais circunstâncias no Peru, onde a vida política está fraturada e acirrada até extremos absurdos – precisamente no momento em que sua economia caminha melhor, a democracia funciona, a classe média cresce, a luta contra a pobreza avança e a imagem do país no exterior é muito positiva –, jamais ocorreria, e a fratura e o acirramento aumentariam em um debate onde os argumentos legais e de princípios seriam arrasados na incandescência do debate político.
Mas, mesmo que se conseguisse tal consenso, acho que uma lei de mídia é desnecessária quando existe um dispositivo constitucional tão claro a respeito da necessidade de se manter o caráter plural e diversificado da imprensa, a fim de que os diferentes pontos de vista encontrem como se expressar. É melhor que, quando ocorrerem casos como o que nos preocupa agora, se recorra ao Poder Judiciário, de forma específica, em busca de uma solução concreta para o assunto que é tema de controvérsia. É um procedimento mais lento, sem dúvida, mas com menos riscos no que concerne ao objetivo primordial: preservar a liberdade de opinião e de crítica, sem a qual a democracia desmorona como um castelo de cartas.
EL PAÍS
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