sábado, 18 de janeiro de 2014

Uma conversa com Juan Gelman / Os inimigos invisíveis

Juan Gelman

Os inimigos invisíveis

Uma conversa com Juan Gelman
Por Andityas Soares de Moura e Leonardo Gonçalves
Em 30/04/2012
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Juan Gelman é hoje considerado uma das mais importantes vozes da poesia de língua espanhola. Nascido no ano de 1930 em Buenos Aires, foi obrigado a se exilar na Europa durante a ditadura militar que, além de lhe assassinar o filho e a nora, sequestrou-lhe a neta e proibiu a publicação de seus escritos em território argentino.
Detentor de vários prêmios internacionais de poesia, autor de mais de duas dezenas de obras e incansável ativista na luta pelos direitos humanos, Gelman exibe em sua escritura muitas tendências divergentes, tendo conseguido sintetizar e aprofundar algumas das linhas expressivas mais importantes da poesia do século XX, sem, no entanto, abrir mão de uma dicção particularíssima na qual se percebe um raro encontro de ternura, fúria e beleza.
Dentre os poemários que compõem sua vasta obra cabe destacar Hacia el Sur (obra central na qual Gelman recria sua história com o auxílio de heterônimos à moda de Pessoa),Com/posiciones (no qual dialoga com a tradição da poesia árabe-judaica que floresceu na Espanha muçulmana) e Dibaxu (originalmente escrito em sefardita, língua que os judeus utilizaram na Espanha até 1492).
Gelman vem conquistando leitores em todo o mundo desde os anos 50 quando publicou Violín y otras cuestiones. Sua obra foi traduzida para diversos idiomas, inclusive o português brasileiro, onde pouco a pouco a lacuna vem se preenchendo com boas edições.
Em breve conversa com seus tradutores brasileiros, Gelman reflete sobre alguns dos temas mais intensos de sua poesia, sobre a qual Julio Cortázar comentava: “Talvez o mais admirável em sua poesia seja sua quase impensável ternura ali onde mais se justificaria o paroxismo do rechaço e da denúncia, sua invocação de tantas sombras por meio de uma voz que sossega e arrulha, uma permanente carícia de palavras sobre tumbas ignotas”.


Andityas Soares de Moura: Fernando Pessoa disse certa vez que sua pátria era a língua portuguesa. Contudo, Octavio Paz acredita que para os latino-americanos o castelhano – e no caso único dos brasileiros, o português – não é simplesmente uma forma de expressão, mas também um dos instrumentos de dominação que os europeus trouxeram consigo. Assim, temos a impressão de falar uma língua que não é totalmente nossa e somos vistos pelos seus “verdadeiros donos” como falantes de segunda categoria. Gostaríamos de saber como é a sua relação com a língua e o falar maternos.
Juan Gelman: Minha relação com a língua é conflituosa, choco-me contra seus limites. A palavra de fora fere a criança em seu berço e essa ferida nunca se fecha. Supor, então, que depois de cinco séculos o castelhano e o português que se falam na América Latina não são totalmente nossos me parece um disparate retórico. E pouco importa como nos vejam os “verdadeiros donos” destas línguas: faz muito tempo que já não o são. Muito pelo contrário. Se não, como se explica a influência de nossas literaturas nas da península ibérica? As línguas latino-americanas continuam em estado nascente. E concordo com Pessoa. A língua é una pátria que inclui outras: a infância, o país natal, a fala de sua gente e a mais importante, a vida.
Leonardo Gonçalves: Há ainda a questão das suas origens familiares, a convivência com diversas línguas no exílio, brincadeiras com o idioma russo (por exemplo: “que girondo liublimará lamora”) ou com o italiano (“adoro la palabra necesidad en italiano/ necesidad en italiano se dice bi/sogno/”), aquela resistência à língua do país onde se está exilado (especialmente em “Bajo la lluvia ajena”); enfim: coisas que reavivam a especificidade de cada língua e o quanto elas guardam da identidade do indivíduo. A principal relação do poeta é com a língua ou com a linguagem?
JG: A língua usa a linguagem para falar mais consigo mesma.
LG: Mas em cada livro você parece se valer de uma técnica diferente para chegar à expressão poética desejada. Em Hacia el sur há o uso da anedota, em Com/posiciones nota-se algo que lembra uma tradução bem livre, um diálogo com poetas de outros tempos, já em Citas y comentarios você parece esbarrar no misticismo, uma vez que se relaciona diretamente com San Juan de la Cruz, Santa Teresa de Ávila e outros autores dos séculos XVI e XVII. Por outro lado, conhecemos poetas que pensam a técnica somente no que diz respeito à superfície das palavras (métrica, rima, por um lado, e visualidade, plasticidade, por outro). Como se dá a entrada no mundo das palavras? O procedimento é algo importante na busca do resultado poético? Enfim, por quais caminhos se realiza a sua experimentação poética?
JG: Creio que não há receitas para todo mundo, sequer para uma mesma pessoa e só posso falar do meu caso. São as obsessões que me levam a escrever, reconheço-as quando chegam porque fico de mal-humor e sinto um ruído no ouvido. Cada obsessão – ainda que o “tema” seja o mesmo – se apresenta cada vez com um novo rosto, como se fosse um ponto diferente do mesmo círculo. Isso exige sua própria expressão, forçosamente distinta das anteriores, e aí há um choque com as ferramentas expressivas antes obtidas e que já não servem. O trabalho de fazê-las está de um lado, juntamente com o de encontrar as outras, as que se aproximam o máximo possível do novo som no ouvido.
LG: É fácil perceber em sua poesia uma espécie de “invenção” de uma nova linguagem. A criação é um ato que ultrapassa a língua? Qual seria, nesse caso, a relação entre o gelmanês e o sentimento da língua argentina?
JG: A criação encontra na língua o que a supera e se converte logo em língua. As linguagens crescem, se enriquecem constantemente desde o fundo dos séculos. Mais que do sentimento da fala da Argentina, creio que de sua música latente “todos os gelmans” comem.
ASM: Uma das características que mais me encanta em sua poesia é a relação amorosa, quase erótica, entre a palavra e o tempo. No exergo de com/posiciones você escreveu: “o tempo e sua dor como paciência ardem no fundo da noite onde cada palavra é astro frio, sol que está por vir”. O nosso tempo é humano e escorre pelos séculos. Contudo, a poesia tem sido nossa única herança de beleza possível. O tempo é um personagem ou o autor da sua aventura poética?
JG: O tempo é o autor da aventura humana e, por conseguinte, da aventura poética. Ele as escreve o tempo todo.
ASM: Então nós somos instrumentos desse tempo-poeta?
JG: A questão é como cada um lê essa escritura.
LG: Houve um momento em que se ouvia intensamente uma infinidade de vozes na sua voz. Nela se percebia Roque Dalton, Rodolfo Walsh, Miguel Angel Bustos, Francisco Urondo e milhares de outros que sequer chegaram a ter voz. Como o som da memória fala dentro de sua obsessão criativa?
JG: A memória é o sustentáculo de toda obra de arte. O grande poeta mexicano José Emilio Pacheco disse que a poesia é a sombra da memória. Às vezes creio que é a sombra dessa sombra.
LG: E quem são esses amigos, essas sombras? Qual a importância da evocação dos seus nomes?
JG: Não sei se é importante, sei que para mim é necessário.
ASM: Uma polêmica que jamais se encerrará é aquela relativa aos inúmeros problemas que perpassam a aproximação da ética e da estética, que no nosso caso se reflete no conflito entre a poesia e a política. Assim, vejo várias referências em sua poesia a autores como Pound, poeta genial que não escondia sua opção fascista. A poesia serve à política ou só se preocupa consigo mesma, construindo aquele “lirismo puro” e despreocupado que Celso Emilio Ferreiro tanto criticou? É possível encontrar um meio-termo? Há um limite entre a vida, o pensar e o fazer?
JG: Me parece que muito se politizou e se sociologizou essa polêmica. Creio que o único tema da poesia é a poesia e que por isso pode falar de tudo: do que é, do que foi, do que poderia ter sido e não foi, daquilo que nos é próximo, daquilo que nos é mais distante, de política e até de amor. É uma verdade de Perogrullo que a grandeza ou a propriedade de uma poesia nada tem a ver com o tema em si de que trata: no mundo foram escritos milhões de poemas de amor que não chegam nem às sandálias dos que Safo escreveu. E milhões de poemas políticos que estão bem longe de alcançar a altura do que escreveram sobre o tema Dante, Shakespeare, Quevedo, Darío, Neruda, Vallejo, para citar exemplos prestigiosos. O que importa é a densidade da escritura e esta só se dá quando a circunstância exterior coincide com a circunstância do coração, como pensava Éluard. E é certo que Ezra Pound trabalhou para Mussolini, mas criou um poema sobre a usura que nenhum marxista-leninista-maoísta soube tirar de si até agora. Também é verdade que Céline se alinhou com os nazistas na França ocupada e perpetrou panfletos anti-semitas de uma virulência perversa, mas é autor desse romance extraordinário sobre a pobreza que se chama “Viagem ao fim da noite”. São muito obscuras as relações entre ideologia e verdadeira criação literária. Aí está o monárquico Balzac: seus personagens mais entranháveis são republicanos, já assinalou Marx. E assim, a ideologia, como o intimismo, só ocupa uma parte da subjetividade de um autor. Sua cosmovisão está constituída por uma e pelo outro, mas não se detém apenas aí, de jeito nenhum.
LG: Em outros tempos, convivia-se com a “terna revolução”, aquela doce utopia de uma América Latina melhor. Você mesmo chegou a declarar, segundo Víctor Casaus, que a revolução, somada ao amor e à poesia, são os três grandes – e únicos – temas da poesia. Como se dá essa revolução hoje? E, mais especificamente, qual é a missão do poeta, se é que ele tem alguma?
JG: Permita-me um esclarecimento: nunca disse que a poesia tem três únicos grandes temas, declarei que a revolução social, o amor, a própria poesia – e também a morte, a meninice, o outono – tecem minhas obsessões, as que me impelem a escrever. As obsessões, desde já, variam em cada um. A missão do poeta, se assim podemos chamá-la, é escrever poesia. Sua simples existência é um ato de resistência contra a desumanidade cada vez maior que estamos padecendo.
ASM: Aproveitando o gancho da pergunta de Leonardo e abandonando um pouco a seara da poesia, gostaríamos de saber como você analisa o contexto político atual, uma vez que o mundo está completamente subjugado por forças invisíveis. Antes tínhamos um inimigo a combater. Todos tinham: os militares, os revolucionários, os americanos, os russos, o bem e o mal das histórias em quadrinhos. Atualmente a dominação é muito mais espiritual do que corporal. Lembro-me de um trecho das Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar que parece ter sido escrito para o nosso momento histórico: “Duvido de que toda a filosofia do mundo seja capaz de suprimir a escravidão: no máximo mudar-lhe-ão o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas porque mais insidiosas: seja transformando os homens em máquinas estúpidas e satisfeitas que se julgam livres quando são subjugadas, seja desenvolvendo neles, mediante a exclusão do repouso e dos prazeres humanos, um gosto tão absorvente pelo trabalho como a paixão da guerra entre as raças bárbaras. A essa servidão do espírito ou da imaginação, prefiro ainda nossa escravidão de fato”. E a minha pergunta: Como resistir a um futuro que se entremostra indizivelmente opressor?
JG: Sinto na passagem de Yourcenar que você cita um certo pessimismo indignado e depreciativo ao qual ela, sem dúvida, tem direito. Não penso o mesmo. Quanto à invisibilidade do inimigo, teríamos que perguntar aos iraquianos ou aos palestinos se têm inimigos invisíveis. A servidão mais insidiosa é o costume e só a utopia pode resistir a ela. Oscar Wilde disse que um mapa-múndi que não incluísse o país da utopia não valeria a pena ser visto. Talvez a função de uma utopia consista fracassar para abrir caminho a outra melhor.
ASM: Lembro-me de ter lido – ainda no exergo de com/posiciones – uma passagem que me comoveu e fez pensar: “traduzir é inumano: nenhuma língua ou rosto se deixa traduzir. deve-se deixar essa beleza intacta e colocar outra para acompanhá-la: sua perdida unidade está adiante”. Veio a dúvida: muitas pessoas acreditam em bruxas, fadas, duendes e papai-noel. E você, acredita em tradução poética? E mais: é necessária a tradução entre línguas tão próximas como o português e o castelhano?
JG: Acredito e não acredito. Há boas traduções e há as muito ruins. São, sem dúvida, necessárias e não só entre línguas próximas como o português, o castelhano ou o galego. Mas também acredito que a tradução de poemas de outro idioma deve antes de tudo escutar sua música e dar-lhe a música do próprio. Traduzir poesia é mais difícil que escrevê-la. É traduzir música.
LG: Guimarães Rosa considera que há pouca distância entre o ato criativo e o ato tradutório. Como se o momento da criação fosse uma espécie de tradução para a língua que conhecemos de algo que não tem língua. Em todo caso, alguns de seus livros – comocom/posicionescitas y comentarios e dibaxu – perpassam as fronteiras da tradução. A tradução é um recurso ou uma obsessão para o poeta?
JG: Não será un recurso obsessivo? Tropeça com as diferenças ou matizes de visão do mundo de cada língua e isso é muito fecundo para quem traduz porque o leva a interrogar a fundo a sua própria palavra. Obsessivamente.
ASM: Ainda sobre a tradução, qual é a importância, para você, do lançamento de Isso no Brasil, esse país tão próximo da Argentina, mas que abriga poetas que desconhecem boa parte da tradição poética latino-americana hispânica, talvez por estarem mais preocupados em assimilar a poética central da Europa e dos Estados Unidos da América?
JG: Acontece que os poetas da América Latina de fala castelhana também conhecem mais a poesia européia e norte-americana que a brasileira, salvo contadas exceções. Mas isso ocorre entre os próprios poetas de fala castelhana. Em nossos países persiste uma espécie de isolamento pela qual na Argentina não se conhece bem o que passa com a poesia no Uruguai, ou no Chile, ou na Colômbia. E vice-versa. As razões deste fenômeno são complexas, históricas, sócio-econômicas e de políticas editoriais que, sobretudo, atrapalham a difusão de poesia. A tradução de “Isso” ao português e sua publicação no Brasil – não importa o fato de que seja eu o autor do livro – rompe essas barreiras, adquirindo então uma importância simbólica.
LG: O livro Isso é contemporâneo de Hacia el surDibaxu e Com/posiciones. Por mais que sejam muito distintos, é possível encontrar correspondências e diálogos entre eles. Você poderia nos falar um pouco sobre o contexto em que Isso foi escrito?
JG: O contexto exterior foi o exílio. O interior, também.
ASM: Ao completar 60 anos, o poeta português Eugénio de Andrade disse estar sentido o peso das sombras. E você, sente esse peso da idade, essa escuridão que se aproxima? Ou é clar/idade?
JG: Sem sombras não há luz.
LG: O tango e a milonga (canto e dança popular nos subúrbios de Buenos Aires) aparecem nos seus poemas de diversas maneiras, nem sempre apresentando caráter puramente musical. Às vezes com um certo clima de humor e de melancolia, você evoca passagens e cantores que ressoam ao fundo aquela arraigada influência do tango. Qual é a importância do tango – e da música em geral – para você?
JG: Borges disse certa vez que o tango é uma maneira de caminhar. Equivocava-se: quando jovem descobri que o tango é uma maneira de conversar. Corpo a corpo.
ASM: O que é ser um poeta latino-americano hoje? É possível apontar algumas vozes que se destacam na multidão? E, por fim, como se sente ao ver que boa parte dos jovens poetas latino-americanos – e aqui acho que posso incluir a mim e a Leonardo – foram influenciados por sua obra?
JG: Ser um poeta latino-americano hoje é como ser um poeta francês ou vietnamita hoje. Dizia o grande Bashô que não se deve imitar aos antigos, mas buscar o mesmo que eles buscaram e acho que todos estamos nessa. Claro que há vozes latino-americanas importantes e a lista de seus nomes não seria curta. A poesia latino-americana goza de boa saúde. Os que correm perigo com cada ditadura militar são os poetas.





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