quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

“Eu me chamo Chavela Vargas. Não se esqueçam do meu nome”

Chavela Vargas
Pablo Gallo

“Eu me chamo Chavela Vargas. Não se esqueçam do meu nome”

Um documentário mostra a vida tanto selvagem como criativa da cantora mexicana, uma artista que lutou para defender sua liberdade e opção sexual




GREGORIO BELINCHÓN
Berlim 11 FEV 2017 - 18:22 COT

Chavela Vargas teve muitas vidas. Todas desmedidas e cheias de ânsia por liberdade. Algumas mais felizes, umas com mais amor, outras com mais álcool. E, em cada uma delas, lutou por não trair seus ideais e para ser ela mesma. Catherine Gund e Daresha Kyi reuniram todas as Vargas possíveis em Chavela, um documentário que estreou na sexta-feira em Berlim, na sessão Panorama, e que resume, com êxito, uma existência de 93 anos em 90 minutos.
Chavela Vargas não nasceu sendo Chavela, e nem no México. Natural de San Joaquín de Flores, Costa Rica, María Isabel Anita Carmen de Jesus Vargas Lizano (1919 – 2012) foi uma menina especial, e seus pais a escondiam quando recebiam visitas em casa por sua estranha maneira de ser e de se vestir. Quando eles se separaram, ela foi morar com seus tios, e, aos 17 anos, tomou uma decisão: se mudar para o México e começar uma nova vida como Chavela Vargas. O filme mescla entrevistas com a artista, em distintas épocas, declarações atuais de pessoas que a conheciam e amavam e apresentações e gravações históricas da cantora. Dessa maneira, Chavela é quem se encarrega de contar suas próprias vivências, como quando relembra seus primeiros anos no México e as tentativas de se apresentar como o resto das cantoras, com sapatos de salto e vestidos que a faziam tropeçar nos palcos. Finalmente, ela decidiu passar a usar suas míticas calças e ponchos, e, assim, foi descoberta pela esposa do reconhecido compositor e cantor José Alfredo Jiménez, em um clube, na década de 1940. Sua voz era única, e sua expressão corporal durante os shows também. José Alfredo percebeu que Chavela possuía uma extraordinária capacidade de canalizar a dor através de sua voz, e esse era um sentimento que fervilhava em todas as letras do compositor.
Aquela união, perfeita no campo artístico, também foi mítica com relação ao alcoolismo. Ambos bebiam muito, ao ponto de cair no chão dezenas de vezes seguidas depois de se embriagarem com milhares de litros de tequila. No entanto, o talento de Vargas se chocava, diretamente, com o México tradicional. Por isso, nunca podia se apresentar em lugares que não fossem clubes ou cabarés. Ela viveu uma história de amor com Frida Kahlo. Conseguiu certa fama em Acapulco, cidade que estava repleta de turistas norte-americanos, no final dos anos cinquenta. Cantou no casamento de Elizabeth Taylor e Michael Todd -"e acordei ao lado de Ava Gardner", conta Vargas-, e teve romances com dezenas de mulheres, inclusive com as esposas de altos funcionários do Governo mexicano. Entre elas, a namorada de Emilio Azcárraga, o todo-poderoso empresário que vetou sua carreira musical em gravadoras. E sim, ela chegou a participar de algumas séries de televisão e filmes antes de ficar doente. Durante anos, viveu da caridade de amigos. Até que, um dia, seu caminho se cruzou com o da jovem advogada Alicia Pérez Duarte, com quem teve uma intensa relação.
Pérez Duarte dá muitas informações importantes sobre a cantora no documentário Chavela. Fala, por exemplo, sobre sua capacidade de reinventar fatos de sua vida e transformá-los em lendas. Como quando deixou de consumir álcool e disse que isso foi mérito de xamãs. De acordo com Pérez Duarte, Chavela deixou de beber depois de um feio incidente com uma pistola que envolveu o segundo filho –que na época tinha oito anos- da advogada.
Além disso, a própria artista dizia que Isabel era uma pessoa maravilhosa, mas que Chavela era um touro difícil de montar.



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Sóbria, Chavela Vargas retomou sua carreira. A maior parte de seus fãs pensava que ela tinha morrido, mas, no final dos anos oitenta, ela reapareceu com um concerto na Cidade do México. Ali, conheceu um empresário espanhol, e, em 1993, se apresentou na Sala Caracol em Madri. Nesse momento, começou sua segunda carreira, na qual pode, pela primeira vez, pisar em teatros. Pedro Almodóvar se tornou seu amigo e padrinho, e conseguiu que ela pudesse se apresentar no Olympia de Paris. E, só então, o México decidiu abrir suas portas de maneira definitiva para Chavela, com um show no teatro de Belas Artes.
O longa-metragem traz de volta suas frases mais marcantes, que soam como bombas através de sua voz: "Eu sempre soube. Não existe ninguém que suporte a liberdade alheia; ninguém gosta de viver com uma pessoa livre. Se você for livre, esse é o preço a ser pago: a solidão"; "Ninguém morre de amor, nem por falta nem por excesso"; "O amor não existe, é um invento de noites de bebedeira".
O filme também ilustra sua solidão, sua independência, seu lesbianismo nunca anunciado, publicamente, até completar 80 anos de idade (provavelmente porque já não fazia falta dizer; ou porque, no México, tudo é permitido nos palcos, mas não nas ruas), sua liderança dentro da comunidade lésbica mexicana... Entre os espanhóis que dão depoimentos sobre ela estão Miguel Bosé, Elena Benarroch e Laura García-Lorca: seu último show foi na Residência de Estudantes de Madri em julho de 2012. Dois dias depois Chavela voltou, rapidamente, para o México, para poder morrer ali, o que aconteceu no dia 5 de agosto daquele mesmo ano.
Chavela é um documentário excepcional porque em 90 minutos fixa a imagem e a vida da artista sem regatear suas contradições, suas dores (morreu ainda ressentida pela falta de amor por parte de sua mãe), suas paixões e seu talento. Na sexta-feira, os aplausos em Berlim foram merecidos.
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