sábado, 22 de março de 2014

Anton Tchekhov / A corista


Anton Tchekhov
A CORISTA




Certo dia, quando ela ainda era mais jovem e mais bonita, e sua voz era melhor, Nikolai Petróvitch Kolpakov, seu adorador, estava sentado na sala de sua datcha. O calor era abafado e insuportável. Kolpakov acabara de almoçar e de tomar uma garrafa inteira de mau vinho do Porto, e sentia-se indisposto e mal-humorado. Ambos se aborreciam e esperavam que o calor amainasse, para poderem sair a passear.
Súbito, inesperadamente, soou a campainha do vestíbu­lo. Kolpakov, que estava sem paletó e de chinelos, pôs-se de pé num salto e lançou a Pacha um olhar interrogador.
— Deve ser o carteiro ou, quem sabe, uma amiga — disse a cantora.
Kolpakov não se acanhava nem diante das amigas de Pacha, nem diante dos carteiros, mas, em todo caso, agarrou sua roupa e entrou no aposento vizinho, enquanto Pacha correu para abrir a porta. Para seu grande espanto, na so­leira estava, não o carteiro e não uma amiga, mas uma senhora desconhecida, jovem, bonita, trajada com distinção e, por todos os indícios, uma mulher das decentes.
A desconhecida estava pálida e tinha a respiração ofe­gante, como quem acabasse de galgar uma escada alta.
— O que deseja a senhora? — perguntou Pacha.
A senhora não respondeu logo. Ela deu um passo para diante, examinou o aposento lentamente e sentou-se com um ar tal como se não pudesse ficar de pé, de cansaço ou doen­ça. Depois, ficou longamente movendo os lábios exangues, tentando articular alguma coisa.
— Meu marido está aqui? — perguntou ela, afinal, erguendo para Pacha seus grandes olhos de pálpebras incha­das de chorar.
— Que marido? — balbuciou Pacha, e súbito sentiu um susto tão grande, que lhe gelou as mãos e os pés.
— O meu marido... Nikolai Petróvitch Kolpakov.
— Não... não, minha senhora... Eu... eu não conheço nenhum marido.
Um minuto transcorreu em silêncio. A desconhecida passou o lenço algumas vezes pelos lábios pálidos e, para vencer o tremor interno, prendeu a respiração, enquanto Pacha permanecia diante dela, imóvel, como petrificada, e fitava-a, cheia de perplexidade e medo.
— A senhora diz, então, que ele não está aqui? — perguntou a senhora com voz firme, e sorriu de um modo estranho.
— Eu... eu não sei por quem a senhora pergunta.
— Nojenta que a senhora é, baixa, ignóbil... — bal­buciou a desconhecida, envolvendo Pacha num olhar de ódio e repugnância. — Sim, sim, a senhora é nojenta. Estou muito, muito contente por poder, finalmente, dizer-lhe isso!
Pacha sentiu que, àquela senhora distinta, vestida de negro, de olhos irados e longos dedos alvos, ela causava a impressão de algo asqueroso, disforme, e sentiu vergonha de suas faces vermelhas e rechonchudas, das sardas no nariz e da franjinha na testa, que não se deixava pentear para cima de jeito nenhum. E parecia-lhe que, se fosse magra, estivesse sem pó e não usasse franjinha, seria possível esconder que não era séria, e não seria tão terrível e vergonhoso estar diante daquela senhora misteriosa e desconhecida.
— Onde está meu marido? — continuou a senhora. Entretanto, se ele está aqui ou não, é-me indiferente, mas devo dizer-lhe que foi descoberto um desfalque e Nikolai Petróvitch está sendo procurando... Querem prendê-lo. Eis aí o que a senhora fez!
A senhora levantou-se e começou a andar pela sala, presa de grande agitação. Pacha olhava para ela e, de terror, não compreendia nada.
— Hoje mesmo ele será encontrado e detido — disse a senhora, e soluçou, e nesse som ouvia-se insulto e desgosto.
— Eu sei o que o levou até este terror! Nojenta, asquerosa! Criatura vendida, repugnante! — Os lábios da senhora se torceram e o nariz se contraiu de nojo. — Eu estou impo­tente... Ouça aqui, mulher baixa! Eu estou impotente, a senhora é mais forte do que eu, mas existe quem me defen­da, a mim e aos meus filhos! Deus vê tudo! Ele é justo! Ele lhe pedirá contas por cada lágrima pequenina, por todas as noites insones! Chegará o dia, a senhora se lembrará de mim!
Novamente fez-se um silêncio. A senhora andava pela sala e torcia as mãos, e Pacha continuava a fitá-la estupida­mente, perplexa; não compreendia e esperava dela alguma coisa terrível.
— Eu, senhora, não sei de nada! — articulou ela, e de repente desatou a chorar.
— Mente! — gritou a senhora, e lançou-lhe um olhar faiscante de raiva. — Eu sei de tudo! Há muito tempo que eu sei de tudo! Eu a conheço de longa data! Eu sei que, neste último mês, ele passa aqui na sua casa todos os dias!
— Sim. E então? Que é que tem isso? Recebo muitas visitas, mas não obrigo ninguém. Aos livres a liberdade.
— Eu lhe digo: foi descoberto um desfalque! Ele gas­tou dinheiro alheio, na repartição! Por uma... uma como a senhora, por sua causa, ele cometeu um crime. Escute — disse a senhora em tom decidido, parando diante de Pacha —, a senhora não pode ter princípios, a senhora só vive para causar mal, esse é o seu escopo, mas não é possível pensar que tenha caído tão baixo que não lhe sobre nem um resquício de sentimento humano! Ele tem esposa, filhos... Se for condenado e deportado, eu e meus filhos morreremos de fome... Compreenda isso! E no entanto existe um meio de salvá-lo, e a nós, da miséria e da desonra. Se eu depo­sitar hoje novecentos rublos, deixá-lo-ão em paz. Apenas novecentos rublos!
— Que novecentos rublos? — perguntou Pacha bai­xinho. — Eu... eu não sei... Eu não tomei...
— Eu não lhe peço novecentos rublos... A senhora não tem dinheiro, nem eu quereria do seu. Peço outra coisa... Os homens costumam dar a essas... a mulheres como a senhora, presentes de objetos de valor. Devolva-me apenas aquelas coisas com que meu marido a presenteou!
— Madame, ele não me deu presente algum! — guin­chou Pacha, começando a compreender.
— Onde está então o dinheiro? Ele esbanjou tudo, o meu e o alheio... Onde foi parar tudo isso? Escute, eu lhe peço! Eu estava indignada e disse-lhe coisas desagradáveis, mas peço desculpas. A senhora deve odiar-me, eu sei, mas, se é capaz de compaixão, procure colocar-se no meu lugar! Imploro-lhe, devolva-me os objetos!
— Hum — disse Pacha, e encolheu os ombros. — Eu teria muito prazer, mas, que Deus me castigue, ele nunca me deu nada. Creia na minha consciência. Entretanto a se­nhora tem razão — encabulou a cantora —, uma vez ele me trouxe duas coisinhas. Pois não, eu devolvo, se a senhora deseja...
Pacha abriu uma gaveta e tirou uma pulseira de ouro chapeado e um anelzinho ralo com um rubi.
— Aqui tem! — disse ela, estendendo essas coisas a visitante.
A senhora enrubesceu, seu rosto começou a tremer. Ela sentiu-se insultada.
— Que é que a senhora está me dando? — disse ela. Não lhe peço esmola, e sim aquilo que não pertence à senhora... aquilo que a senhora, aproveitando-se da situa­ção, extorquiu do meu marido... desse homem fraco e infe­liz... Quinta-feira, quando eu a vi com o meu marido no cais, a senhora usava pulseiras e broches caros. Portanto, não adianta representar diante de mim o cordeirinho inocente! É pela última vez que lhe peço: vai dar-me as jóias ou não?
— Como a senhora é esquisita, palavra — disse Pacha, começando a ficar ofendida. — Asseguro-lhe que do seu Nikolai Petróvitch, além desta pulseira e do anelzinho, eu nunca vi nada. Ele só me trazia pasteizinhos doces.
— Pasteizinhos doces... — sorriu a desconhecida com ironia. — Em casa as crianças não têm o que comer, mas, aqui, pasteizinhos doces. A senhora recusa definitivamente devolver as jóias?
Não tendo recebido resposta, a senhora sentou-se e, pondo-se a pensar, fixou os olhos num ponto qualquer.
— Que fazer agora? — articulou ela. — Se eu não conseguir novecentos rublos, ele está perdido, e eu com os meus filhos também estamos perdidos. Matar esta canalha ou cair de joelhos diante dela, quem sabe?
A senhora apertou o lenço contra o rosto e desatou a soluçar.
— Eu lhe peço! — ouvia-se através dos soluços. — Foi a senhora que arruinou e destruiu meu marido, salve-o... A senhora não tem compaixão dele, mas as crianças... as crianças... que culpa têm as crianças?
Pacha imaginou criancinhas pequenas, jogadas na rua e chorando de fome, e ela mesma debulhou-se em lágrimas.
— Que é que eu posso fazer, madame? — disse ela.
— A senhora diz que eu sou uma canalha e arruinei Nikolai Petróvitch, mas eu lhe digo, como diante do próprio Deus... Asseguro-lhe que nunca tirei proveito nenhum do seu, ma­rido... No nosso coro só a Mótia tem um amante rico, mas todas nós, as outras, vivemos da mão para a boca. Nikolai Petróvitch é um senhor instruído e delicado, está aí, e eu o recebia. Nós não podemos deixar de receber.
— Eu peço as jóias! Dê-me as jóias! Estou choran­do... me rebaixando... Se quiser, eu ficarei de joelhos! Pronto!
Pacha deu um grito e começou a agitar as mãos, de susto. Ela sentia que aquela senhora pálida e bonita, que se exprimia com tanta nobreza, como no teatro, podia de fato cair de joelhos diante dela, justamente por orgulho, por nobreza, para se elevar ainda mais e para humilhar a corista.
— Está bem, eu lhe darei as jóias! — afligia-se Pacha, enxugando os olhos. — Pois não. Só que elas não são de Nikolai Petróvitch... Eu as ganhei de outros visitantes. Como quiser, senhora...
Pacha abriu a gaveta de cima da cômoda, tirou dela um broche com uma esmeralda, um fio de coral, alguns anéis, uma pulseira, e estendeu tudo à senhora.
— Leve, se deseja, só que de seu marido eu nunca tive proveito nenhum. Tome, fique rica — continuava Pacha, insultada pela ameaça de cair de joelhos. — Mas se a se­nhora é tão distinta... sua esposa legítima, devia segurá-lo junto de si. Está aí! Eu não o chamei para a minha casa, ele veio sozinho...
Através das lágrimas, a senhora examinou as jóias re­cebidas e disse:
— Isto não é tudo... Aqui não há nem para quinhen­tos rublos.
Impulsivamente, Pacha arrancou da cômoda mais um relógio de ouro, uma cigarreira e abotoaduras e disse, abrin­do os braços:
— Além disso não me ficou mais nada... Pode dar busca!
A visitante suspirou, embrulhou as jóias, com mãos trêmulas, no seu lencinho e, sem dizer uma palavra, sem mesmo acenar com a cabeça, saiu.
Abriu-se a porta do aposento vizinho e entrou Kolpa­kov. Ele estava pálido e sacudia nervosamente a cabeça, como se acabasse de engolir algo muito amargo; nos seus olhos brilhavam lágrimas.
— Que coisas o senhor já me trouxe? — atirou-se Pacha sobre ele. — Quanto, permita-me que lhe pergunte?
— Coisas... Ninharias, isso — coisas! — articulou Kolpakov, e sacudiu a cabeça. — Deus meu! Ela chorou diante de ti, ela se humilhou...
— Eu lhe pergunto: que jóias o senhor me trouxe? — gritou Pacha.
— Deus meu, ela, decente, altiva, pura... quis até cair de joelhos diante... desta rameira! E fui eu que a levei a isso! Fui eu que o permiti!
Ele apertou a cabeça com as mãos e gemeu:
— Não, jamais me perdoarei por isso! Não perdoarei! Afasta-te de mim... vagabunda! — bradou ele com repugnância, recuando diante de Pacha e afastando-a de si com mãos trêmulas. — Ela quis cair de joelhos e... diante de quem? Diante de ti! Oh, meu Deus!
Ele vestiu-se depressa e, desviando-se de Pacha com nojo, dirigiu-se para a porta e saiu.
Pacha deitou-se e começou a chorar alto. Ela já estava com pena das suas jóias, que entregara num impulso, e esta­va ofendida. Lembrou-se de como três anos atrás, sem mo­tivo algum, um comerciante lhe dera uma surra, e chorou mais alto ainda.


1886.


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